terça-feira, 29 de março de 2011

Texto 6 - Empirismo

Verbete in ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

EMPIRISMO (in. Empiricism; fr. Empirisme, al. Empirismus, it. Empirismó).
Corrente filosófica para a qual a experiência é critério ou norma da verdade. Em geral, essa corrente caracteriza-se pelo seguinte:
1a) negação do caráter absoluto da verdade ou, ao me nos, da verdade acessível ao homem;
2a) reconhecimento de que toda verdade pode e deve ser posta à prova, logo eventualmente modificada, corrigida ou abandonada.
Portanto, o E. não se opõe à razão ou não a nega, a não ser quando a razão pretende estabelecer verdades necessárias, que valham em absoluto, de tal forma que seria inútil ou contraditório submetê-las a controle. Foi desse modo que Sexto Empírico caracterizou o E., e, com base nessas características, reconhecia o seu parentesco com o ceticismo; essas características continuaram sendo fundamentais em todas as doutrinas posteriormente denominadas empíricas, quaisquer que fossem suas determinações peculiares. Sexto Empírico diz que o médico empírico, ou melhor, metódico, "nada afirma temerariamente acerca dos fatos obscuros, mas, sem pretender dizer se são compreensíveis ou não, acompanha os fenômenos e destes toma aquele que lhe parece útil, assim como fazem os céticos". E acrescenta: o que a medicina metódica e o ceticismo têm em comum é a falta de dogmas e a indiferença no uso das palavras, sendo comum também a regra de seguir as indicações da natureza é as fornecidas pelas necessidades do corpo {Pirr. hyp., I, 236-41).
Depois de vários séculos, Leibniz dava o mesmo conceito de E., mas contrapondo nitidamente o procedimento empírico ao racional: "Os homens agem como os animais na medida em que o concatenamento de suas percepções só é realizado pela memória, assemelhando-se assim aos médicos empíricos, que só têm prática e nenhuma teoria. Em três quartos de nossas ações nós somos apenas empíricos: p. ex., quando prevemos que vai amanhecer, estamos agindo empiricamente, pois estamos esperando que aconteça o que sempre aconteceu. Só o astrônomo julga esse fenômeno com a razão. Mas é o conhecimento das verdades necessárias e eternas que nos distingue dos simples animais e nos faz ter razão e ciência, elevando-nos ao conhecimento de nós mesmos e de Deus" {Monad., §§ 28-29). A razão, nesse sentido, é infalível. Se como faculdade humana pode enganar-se, como "concatenação das verdades e das objeções em boa forma, é impossível que a razão nos engane" (Théod., Disc, § 65). É muito provável que dessas observações de Leibniz nos tenha chegado o conceito de E., de racionalismo e da oposição entre ambos. O racionalismo defende a necessidade da razão como "concatenação das verdades", como faculdade, no sentido de que ela não pode ser diferente do que é e, portanto, não pode sofrer desmentidos e não exige confirmações. A tese do E. é de que essa necessidade não existe e que, portanto, toda e qualquer "concatenação de verdades" deve poder ser posta à prova, controlada e eventualmente modificada ou abandonada.
A essa característica fundamental do E. e com base nela acrescentam-se outras, com as quais ele foi associado em cada fase de sua história:
1a) Negação de qualquer conhecimento ou princípio inato, que deva ser necessariamente reconhecido como válido, sem qualquer atesta-ção ou verificação. Essa característica, estabelecida por Locke no primeiro livro de Ensaio, foi das que mais sobressaíram no séc. XVIII e às vezes serviu para definir o E., embora não passe de conseqüência derivada dele.
2a) Negação do "supra-sensível", entendido como qualquer realidade não passível de verificação e controle de qualquer tipo. Ora, os melhores e mais diretos instrumentos de que o homem dispõe para a verificação de si mesmo e das realidades em que está mais diretamente interessado são os órgãos dos sentidos; desse modo, o E. apresenta-se na maioria das vezes como o recurso à evidência sensível enquanto método para decidir o que deve ser considerado real. Essa característica foi quase sempre usada para definir a natureza do E.; sendo considerada fundamental. Na verdade, por mais importante que seja, não é fundamental, mas secundária e derivada de outra, segundo a qual o E. é a exigência de que qualquer verdade só seja aceita se puder ser devidamente verificada e confirmada.
3ª) Ênfase na importância da realidade atual ou imediatamente presente aos órgãos de verificação e comprovação, ou seja, no fato-, essa ênfase é conseqüência do recurso à evidência sensível. Essa é a característica que Hegel reconhecia como mérito do E.: o princípio de que "o que é verdade deve estar na realidade e estar lá para a percepção", e portanto "aquilo que o homem quiser admitir em seu saber deverá ir ver pessoalmente, confirmar pessoalmente sua presença" (Ene, § 38). Desse ponto de vista, a atitude empírica consiste em ressaltar a importância dos fatos, dos dados, das condições que tornam possível a verificação de uma verdade qualquer, pois a verdade só é verdade quando verificada como tal, e o único meio de verificá-la, se ela se refere a coisas reais, é confrontá-la com os fatos nos quais essas coisas se apresentam, por assim dizer, em pessoa.
4ª) Reconhecimento do caráter humano limitado, parcial ou imperfeito dos instrumentos de que o homem dispõe para verificar e comprovar a verdade, além da aplicação e do uso desses instrumentos em todos os campos de pesquisa acessíveis ao homem e só neles. Essa é a característica limitativa ou crítica do E., que é tradicionalmente associado ao reconhecimento da limitação das possibilidades humanas, e, portanto, da restrição da investigação aos limites impostos por essas possibilidades, ao mesmo tempo em que é associado à decisão de prosseguir as investigações até onde tais possibilidades o permitam e em qualquer campo que o permitam. Sob esse aspecto, o E. é substancialmente uma instância cética, que de dúvida geral transformou-se em dúvida organizada e metódica para experimentar, em todos os campos, o alcance da verdade que o homem pode obter. O E. alija da filosofia, e de qualquer pesquisa legítima, os problemas referentes a coisas que não sejam acessíveis aos instrumentos de que o homem dispõe. Hume entendia o E. nesse sentido. Donde a constante polêmica do E. moderno contra a "metafísica", que é precisamente o campo desses problemas ou ao menos é assim considerada pelas correntes empíricas. Mas no próprio domínio das realidades acessíveis ao homem, o E. freqüentemente encontra limites que lhe parecem intransponíveis, como p. ex. a "substância" de que fala Locke ou a "coisa em si" de que falam os empiristas do séc. XVIII e o próprio Kant.
Essas características são típicas do E. moderno que se inicia com Locke. Não incluem, como se vê, nenhuma renúncia ao uso de instrumentos racionais ou lógicos, se adequados às possibilidades humanas. Não incluem sequer a renúncia a qualquer tipo de generalização, hipótese ou teorização, em qualquer escala ou grau, implicando só a exigência de que qualquer generalização, hipótese ou teorização possa ser posta à prova e, portanto, confirmada ou refutada.
A mais recente forma de E., qual seja, o E. lógico do Círculo de Viena (v.) e de algumas correntes inglesas e americanas, ajusta-se às características acima expostas. Com efeito, "a exigência fundamental do E. lógico é que qualquer enunciado, para ter sentido, deve ser de certo modo verificado, confirmado ou submetido à prova" (Carnap, Testability and Meaning, em Phil. of Science, 1953, p. 73), e esse princípio leva a restringir a investigação apenas ao domínio dos significados lingüísticos que satisfaçam à tradicional exigência empirista de verificação e comprovação e a declarar "desprovidos de sentido" todos os outros.
No que concerne ao pensamento antigo e medieval, não se pode dizer que apresente formas completas de empirismo. Nele podem ser facilmente encontrados aspectos ou tendências de E., mas não se observa o conhecimento nem a aceitação da exigência fundamental de que qualquer verdade seja verificada ou comprovada por um método adequado. Mas encontra-se freqüentemente a característica 2a, o sensacionismo, que foi de fato compartilhado por cirenaicos, estóicos e epicuristas. Entre Platão e Aristóteles, o mais próximo do E. é Platão, apesar do interesse que Aristóteles demonstrou pelo mundo natural e da extensão de suas pesquisas nesse campo. De fato, o que Aristóteles considerava como objeto de investigação em qualquer campo é a substância, a razão de ser das coisas, da qual são dedutíveis, por via silogística, todas as propriedades da coisa, e a substância, embora empiricamente seja aquilo que se apresenta sempre do mesmo modo, não é suscetível de verificação ou comprovação pela experiência, mas a ela se chega por meio da dedução dos princípios evidentes comuns a todas as ciências e dos princípios próprios de cada ciência (v. Substância). O método dialético de Platão (v. Dialética), no entanto, parece consistir justamente na verificação e na comprovação das determinações atribuídas a determinada realidade; assim, essas determinações podem ser abandonadas, corrigidas ou modificadas pelos empregos sucessivos do método. Mas o E. de Platão só pode ser reconhecido pelos modernos, já que Platão contrapunha o seu método precisamente à experiência e nele evidenciava as características contrárias: como aparece claramente no trecho de Leis (citado no verbete Experiência) em que à experiência do médico de escravos contrapõe o procedimento racional do médico de homens livres {Leis, IV, 720 c-d).
Na Idade Média, a tendência empirista manifesta-se na negação freqüente da realidade do universal, que sempre implica o recurso à experiência, e no reconhecimento da experiência como processo que permite verificar e comprovar a realidade atual das coisas; p. ex., como conhecimento intuitivo. Nesse sentido, a doutrina de Ockham é a principal manifestação do E. medieval.
Finalmente, a antítese estabelecida por Francis Bacon entre a antecipação da natureza, que, sem verificação nem comprovação, salta dos casos particulares para os axiomas generalíssimos, e a interpretação da natureza, que consiste em ir, "sem saltos e por graus", das coisas particulares aos axiomas (Nov. Org., I, 24), representa a certidão de nascimento do E. moderno e de sua oposição a qualquer forma de racionalismo dogmático.

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